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segunda-feira, 26 de abril de 2010

O Criador (revisto2)

Já havia acordado com uma angústia estranha. Levantara da cama como quem ergue o mundo, e a falta de afazeres em função das férias terminara por aumentar minha angústia. Passara pelo centro da cidade, sem deter-me mais do que duas horas, pois apenas fora necessário devolver alguns livros à biblioteca da faculdade e encontrar minha professora de violão para fazer o planejamento do repertório que tocaria no semestre seguinte. Agora, voltando pra casa, pensei que seria mais feliz se tivesse mais afazeres que me entretecem, pois mesmo o dia tendo sido lento, e até mesmo assustador, por algum motivo que eu mesmo desconheço não me motivei a procurar algum amigo. Ao passar por uma praça resolvi sentar-me, e ali fiquei, ocioso, apenas contemplando a própria sensação de estar perdido, mas despreocupado em fazer algo a respeito. A noite já chegava quando vi que o dia passara e eu em nada me movera, sentia a mesma angústia que antes, como se não tivesse saído daquele momento, daquela atmosfera inicial do mesmo momento. Marasmo e desgosto! O que fazer? Decidi voltar pra casa e escrever algo que me aliviasse, qualquer coisa.

Há duas quadras de casa cruzei com um rapaz de rosto familiar, embora não soubesse saber de onde poderia conhecê-lo. Paramos os dois, meio que por inércia, talvez igualmente intrigados um pelo semblante do outro, e reconheci em seu olhar um quase cumprimento, e um certo princípio de gesto de cabeça, como se houvesse desistido de um primeiro impulso de me cumprimentar. Vi-me nessa sua postura, pois também me sentia desconcertado, e não teria parado se seu semblante não me despertasse um fascínio diferente, um algo de misterioso e familiar ao mesmo tempo. Passados poucos segundos, com o corpo apontando para outra direção, como se indeciso sobre sobre ficar ou seguir, perguntou-me, com expressão confusa, se nos conhecíamos. Disse-lhe que não, ensaiando o primeiro passo de volta ao meu caminho, e teria realmente ido se não me houvesse comovido ainda mais ao reparar algo em sua expressão de dúvida que parecia surpreendentemente refletir meu próprio estado de espírito. Perguntei-lhe o nome, já que estávamos ali, e fui respondido apenas com seu olhar perplexo, como se lhe custasse encontrar as palavras. Eu começava a concluir que seu olhar confuso, talvez atônito, me havia feito fantasiar meus próprios sentimentos em sua imagem; que a solidão daqueles dias me estava enlouquecendo, quando meus pensamentos foram interrompidos por um gesto seu pedindo-me que esperasse, e, e sentando-se em silêncio na bancada da ponte sobre o arroio, demorou-se alguns segundo olhando as águas imundas do dilúvio, até que tornou a me olhar falando assim:

"Hoje eu acordei... Estava deitado em uma cama, em um quarto, dentro de um apartamento. Acordei como se fosse meu primeiro dia de vida. Não entendi porque estava ali em meio àquelas coisas nem porque elas tinham esses nomes, mas foi o que me ocorreu na hora. Foi assombrosa minha naturalidade ao escovar os dentes. Me vi no espelho e acreditei saber que aquele era eu. Aceitei também o espelho, e, ao mesmo tempo em que a aparente realidade de tudo aquilo me trazia segurança, me angustiava lembrar que sequer poderia imaginar algo assim no instante em que acordara. Tive de aceitar as coisas não só por elas estarem ali, mas por eu mesmo dizer que estavam ali. Mesmo sabendo que nada precisava ser assim, não consegui voltar pro lugar de onde vim, se é que eu vim de algum lugar, se é que as coisas precisam vir de algum lugar, e experimentei fechar os olhos. Enquanto pensava tive a sensação de que meus próprios pensamentos me faziam acreditar na minha existência, mas nem eles nem as palavras que carregavam me convenceram serem reais. Enfim, aceitei a essas coisas e me vesti porque não soube fazer diferente.

Lembrei que o dia é quinta-feira, que o mês é Julho, e fui a compromissos supondo que os mesmos existissem antes da consciência com a qual eu havia acordado. Diante de todas essas coisas senti inventar o tempo, fatos e explicações. "Antes", "depois", "família", "mundo", "amigos", "ex-amores", "antigos sonhos"... Eram tantas as coisas que eu lembrava, ou inventava, e ainda assim nenhuma delas me convencia não ser ilusão. Achei complicado andar sob tantas referências arbitrárias, e solitário sentir-se o único criador de todas elas.

Fui à rua ansiando por vida inteligente para interagir, e não soube se, ao invés de eu, não eram a calçada e os prédios que se moviam, materializando-se como cenário da realidade que eu mentalizava. Ninguém me convencia existir. As pessoas andavam vestidas e penteadas, falando e gesticulando como se isso tudo fosse natural, e em poucas horas sentia que eu também, naquela altura entre meus pensamentos, também passava a lutar por objetivos e flertar com ideais. Caminhava sem rumo pelas ruas menos movimentadas do centro, e às vezes sentia como se desvendasse todos os segredos, mas então me sentia insuportavelmente só. Ao mesmo tempo em que essa dor aparecia, novas ilusões se materializavam e as coisas retomavam seu movimento mesmo que de forma completamente arbitrária. Mesmo que eu não pudesse assegurar nada, não fui capaz de escapar de minhas criações. Pensei que hoje, depois de dormir, se é que dormir não é invenção, talvez acordasse em outro tempo-lugar, e esquecesse desse aqui. Talvez então eu inventasse coisas pra lembrar, achando que sempre estivera lá...

No final do dia percebi desconstruir paixões pra não perder o controle e refazer ilusões pra enganar a solidão. Não estou seguro do que está em mim e do que está no mundo. Convenci-me então de meu poder e fardo. Ainda me sinto tendo de criar todas as palavras e regras da minha fala enquanto elas tomam ares de lembrança de algo que eu já sabia fazer, e por isso sigo desconfiado. Restou-me escrever, ler, reler, re-escrever e continuar até o momento em que meu pensamento parecesse real o suficiente pra que eu voltasse a acreditar em algo, e o que te conto agora é o resultado desse meu esforço de tradução - são as idéias que consegui elaborar enquanto escrevia. A essa altura já atuo sobre muitas certezas, mas ainda me sinto mal com elas. É assim que me sinto. Enquanto estiver longe do momento em que acordei ainda estarei seguro, mas na verdade me sinto iludido.

Sou um Criador, e é assombroso erguer-se em maio ao caos. Toda matéria que revolvo sai de mim, sinto-me só e minha dor cria novas ilusões, nova vida, novas paixões. Amo meu próprio rastro até desvendar seu mistério lembrando de que forma o produzi. Crio à partir do que me falta enquanto minha falta aumenta. Têm sido assim desde a explosão inicial... Têm sido assim desde hoje de manhã."

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