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domingo, 6 de setembro de 2009

Rindo à Toa



Em um final de tarde, com o trânsito tão lotado quanto o ônibus, ninguém nunca parece muito animado, ainda mais naquela linha de ônibus que partia do campus mais distante da Universidade Federal. Para a grande maioria dos que ali se apertavam havia uma longa espera até se chegar à parada desejada. Havia uma certa apatia e não parecia haver nenhum daqueles costumeiros jovens com fones-de-ouvido ouvindo alguma das emissoras de rádio que, sempre mais atentas ao ritmo do cotidiano da cidade, transmitem programas vespertinos de humor.
Logo após a roleta, no sentido de quem vem da porta da frente, havia um casal de jovens com cerca de vinte anos parecendo muito à vontade, rindo de algo que falavam. Provavelmente em outra situação ninguém lhes daria atenção, ainda que fosse difícil não notá-los naquele local de maior movimento do ônibus, e mesmo porque seu alarido dava a impressão de serem mais de duas pessoas; mas suas risadas pareciam ser atraentes justamente por causa da fadiga de algumas pessoas que naquele momento não recusariam algum tipo de descontração. Uns poucos já se entreolhavam, expressando pequenas expressões ainda indefinidas, como que ensaiando algum comentário a respeito da conversa e mostrando-se cientes da situação que compartilhavam.
Era realmente impossível ignorar aquele papo pronunciado tão claramente, e ainda mais assim, tão de perto, no ônibus lotado; mas o assunto em questão parecia ser realmente desinteressante a ponto de tornar as coisas ainda piores para todos que estavam ali, presos, sentindo-se obrigados a escutar a conversa. Antes de qualquer coisa, uma vez que a escuta era quase obrigatória, era preciso tentar buscar o nexo da conversa nas pequenas frases que intermediavam sessões bem maiores das gargalhadas estrondosas. Os dois amigos chegavam a perder o ar, e faria sentido pensar que o assunto fosse digno de tanta empolgação se um breve espaço de tempo já não revelasse que a coisa não era bem assim. Eram muitas risadas, “meta-risadas” sem um assunto real aparente. A conversa ainda que de forma desorientada circundava os programas de “humor” mais desbocados da televisão aberta, e então aquelas piadas ofensivas, de mau-gosto, ou simplesmente bobas pareciam ser o tema central da gritaria; entretanto logo os dois passavam a comentar sobre outros tipos de situações engraçadas: falavam de conhecidos que haviam tropeçado na rua ou simplesmente errado a pronúncia de uma palavra, e daí seguiam-se novas, porém repetitivas gargalhadas. Estava valendo qualquer fato neutro sobre o qual a imaginação desesperadamente risonha dos dois pudesse inventar algum novo motivo para rir. Intercalavam-se, a moça e o rapaz, em observações como “Bah! Muito engraçado!”, ou “Tá loco! Me matei rindo naquela hora!”, não só tentando rir de tudo o que falavam como também relatando outros momentos em que teriam rido de alguma outra coisa.
Enquanto riam mesmo por precisar, e não por achar graça, já despertavam ares de irritação nas pessoas mais próximas. Umas tentavam distanciar sua atenção para a janela ou qualquer outra coisa, enquanto outras sentiam despertar em si sentimentos mais obscuros, como no caso de uma mulher com um pouco mais de trinta anos que, comentando a um rapaz sentado, dissera: “Ah... se fosse meu filho eu já dava laço! Agora que ele recém nasceu eu me preocupo pra que um dia não vire uma coisa dessas”. E no entanto seguiam-se as “gaitadas” sem que quase ninguém conseguisse escapar das mesmas.
Nenhum dos dois moços parecia ter motivos para toda essa graça, e as piadas e relatos agora já eram menos interessantes que aquele comportamento. Conversando lado a lado, de frente para a janela, de costas para o corredor, os dois moços tornavam-se o centro das atenções. A expressão do rapaz era quase desesperada, como se ao mesmo tempo em que risse tentasse gritar algum tipo de impulso contido. Seus olhos eram pouco vívidos, como que perdidos, opacos, inertes; às vezes se perdiam através da janela, um pouco inquietos, sem nunca realmente olharem para aquilo em que miravam; de repente voltavam à moça, assim, sem muita convicção, apenas para rir, pois chegava o momento de uma nova deixa para o fim de outra piada. O moço extravasava de uma forma que chegava a ser ofensiva, demonstrando-se muito pouco descontraído, e nem mesmo parecendo ciente do que a moça lhe dizia, pois começava a rir sempre um pouco antes de ela acabar, enquanto ela falava olhando para baixo, perdida nos detalhes de seus anéis ou nos broches de sua bolsa. Eram assim dispersos e desatentos em tudo o que aparentavam.
Quase uma hora depois, quando todos já haviam preferido emburrar-se a seguir escutando-os, ambos os jovens tornaram-se sérios. A moça começara a relatar as imagens de seu último sonho, falando de números de metal, como esses usados para enumerar casas, num carrinho de supermercado. Segundo ela em seu relato, quando um desconhecido passara com esse carregamento, ela mesmo dissera: “Cara... se eu fosse um ‘serial-killer’ faria o mesmo”. Com certeza eram coisas desconexas demais para quem apenas ouve de longe, analisando tão superficialmente suas palavras, até porque o resto do ônibus já havia dispersado suas atenções, aliviados pelo silêncio; Já quase ninguém os ouvia quando o rapaz, impressionado e preocupado com a moça, revelara que há muito esses sonhos também lhe intrigavam, perguntando-lhe os motivos daqueles devaneios tão extranhos, que já se mostravam dignos de preocupação. Transparecia em seus gestos, em seus comentários, em sua preocupação, pois não falava nada claramente. Mas antes que um olhar um pouco mais atento pudesse fazê-la perceber algum nexo naqueles símbolos, antes que a menor das metáforas esclarecesse algum tipo de tormento esperando para ser reconhecido e resolvido, ela preferira dizer: “Bah meu! Olha só que loucos esses meus sonhos! Nada a ver... bah... muito engraçado!”, e começara a rir novamente. Foi assim que os dois optaram por voltar às gargalhadas, fazendo-o em alto e bom som, enquanto desciam do ônibus...

3 comentários:

  1. E aí Zabaleta, é mais fácil rir do que ter consCIÊNCIA, né?

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  2. É. Foi uma tentativa de dizer algo como isso. Mas, cá entre nós, simplesmente rir é ainda mais custoso, apesar de o riso parecer agradável.

    Bjo!

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  3. Discordo Zizi ou Gigi, trocar letras é mais
    fácil do que rir sem precisar de conciência
    ou sabedoria.
    bj

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