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quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O Criador


Hoje eu acordei me sentindo só. Levantei da cama como quem ergue o mundo, e a falta de afazeres em função das férias terminou por aumentar essa angústia. Tinha alguns compromissos de ordem menor no centro da cidade, e não levaria mais do que duas horas resolvendo-os, pois apenas precisava devolver livros à biblioteca da faculdade e conversar questões técnicas com uma professora. Terminado isso voltaria pra casa. Gostaria de ter tido mais coisas que me entretessem, mas apesar de o dia ter sido lento, e até mesmo assustador, não me motivei a procurar algum amigo. Saindo da faculdade, passeando por uma praça, me sentei e fiquei, ocioso, com a sensação de estar perdido. Acabei voltando pra casa apenas no início da noite, enquanto pensava em escrever algo que me aliviasse a respeito do que sentia.

Há duas quadras de casa cruzei com um rapaz que imaginei ter a minha idade. Não poderia dizer de onde o conhecia, apesar de seu rosto ser tremendamente familiar. Por inércia nos aproximamos com cumprimentos tímidos, e eu não teria parado se seu semblante não me despertasse um certo fascínio. Tinha pressa em chegar em casa. Ele não parecia menos intrigado do que eu, em dúvida sobre ficar ou seguir, perguntando-me, com um ar meio confuso, se nos conhecíamos. Disse-lhe que não, e comoveu-me sua expressão que parecia condizer com meu estado de espírito. Eu estava só e queria conversar, sair um pouco daquela minha realidade, e perguntei-lhe o nome. Não me respondeu de imediato, sentando-se em silêncio e demoradamente na bancada da ponte sobre o arroio, falando assim:

"Hoje eu acordei... Estava deitado numa cama, em um quarto, dentro de um apartamento. Não entendi porque estava ali em meio a essas coisas nem porque elas têm esses nomes. Foi assombrosa minha naturalidade ao escovar os dentes. Me vi no espelho e acreditei saber que aquele era eu. Aceitei também o espelho, e, ao mesmo tempo em que a aparente realidade de tudo isso me trazia segurança, me angustiava lembrar que sequer poderia imaginar algo assim ao acordar. Tive de aceitar as coisas não só por elas estarem ali, mas por eu mesmo dizer que elas ali estavam. Mesmo sabendo que nada precisava ser assim, não consegui voltar pro lugar de onde vim, se é que as coisas precisam vir de algum lugar, e experimentei fechar os olhos. Enquanto pensava passei a acreditar na minha existência, mas nem os pensamentos ou palavras me convenceram serem reais. Enfim, aceitei a essas coisas e me vesti porque não soube fazer diferente.

Lembrei que o dia é quinta-feira, que o mês é Julho, e fui a compromissos supondo que os mesmos existissem antes da consciência com a qual eu havia acordado. Diante de todas essas coisas senti inventar o tempo e minhas próprias explicações. "Antes", "depois", "família", "mundo", "amigos"... São tantas as coisas que eu lembrei, ou inventei, e nenhuma delas me convenceu não ser ilusão. Achei complicado andar sob tantas referências arbitrárias, e solitário ser o único criador de todas elas.

Fui à rua procurando vida inteligente pra interagir, e não soube se, ao invés de eu, eram a calçada e os prédios que se moviam, materializando-se como cenário da realidade que eu mentalizava. Ninguém me convenceu existir. As pessoas andavam vestidas e penteadas, falando e gesticulando como se isso tudo fosse natural, e em poucas horas vi também a mim lutar por objetivos e flertar com ideais. Às vezes desvendava todos os segredos, mas então me sentia insuportavelmente só. Ao mesmo tempo em que essa dor aparecia, novas ilusões se materializavam e as coisas retomavam seu movimento mesmo que de forma completamente arbitrária. Mesmo que nada pudesse ser assegurado eu não fui capaz de escapar de minhas criações. Pensei que hoje, depois de dormir, se é que dormir não é invenção, talvez acordasse em outro tempo-lugar, e esquecesse desse aqui. Talvez então eu inventasse coisas pra lembrar, achando que sempre estivera lá.

No final do dia percebi desconstruir paixões pra não perder o controle e refazer ilusões pra enganar a solidão. Tive de criar todas as palavras e regras da minha fala enquanto elas tomavam ares de lembrança de algo que eu já sabia fazer, e por isso eu sigo desconfiado. Restou-me escrever, reler, re-escrever e continuar até o momento em que meu pensamento parecesse real o suficiente pra que eu voltasse a acreditar em algo, e o que te conto agora é o resultado desse meu esforço. Enquanto estiver longe da desordem ainda estarei iludido. Enquanto estiver longe do momento em que acordei ainda estarei seguro.

Sou O Criador, e é assombroso erguer-se em maio ao caos. Toda matéria que revolvo sai de mim, sinto-me só e minha dor cria nova vida. Amo meu próprio rastro até desvendar seu mistério lembrando de que forma o produzi. Crio à partir do que me falta enquanto minha falta aumenta. Têm sido assim desde a explosão inicial. Têm sido assim desde hoje de manhã."

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