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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Um Ensaio que Precisa ser Lido.

Esse texto é extraído do livro de ensaios "Nós, os gaúchos", coordenado por Sergius Gonzaga e Luís Augusto Fischer, e lançado pela Editora da Universidade (UFRGS) em 1992. Penso que o proposto pelo historiador Décio Freitas, ou no mínimo a forma como o tema é abordado, é de grande valia para algumas das mais importantes e frequentes perguntas levantadas no/sobre o RS. Quais as perdas e ganhos da Revolução dos Farrapos? E da adesão do estado ao Brasil? O que está em questão na delimitação política das regiões?
Segue o texto na íntegra, com exceção dos negritos que eu mesmo coloquei.

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"O Desfalecido Orgulho Gaúcho - Décio Freitas

I

Tempo houve em que os gaúchos olhavam as outras regiões brasileiras por cima dos ombros. Não sem alguma razão: a História, na qual haviam ingressado tardiamente - quase três séculos após a descoberta - legitimava a ufania.
O território gaúcho não fora uma mercê d'El Rei a exigir apenas a expulsão de índios indefesos. Os próprios moradores o haviam conquistado em meio século de guerras contra uma potência colonial européia. Impondo o recuo do meridiano de Tordesilhas, haviam aumentado enormemente o tamanho do Brasil.
O sentimento de orgulho e independência ainda mais se entranhou com a Revolução Farroupilha. As regiões geograficamente periféricas sempre são as mais afetadas pelo centralismo e por isso, quando o Império confiscou a autonomia regional, os gaúchos levantaram o pendão da revolta. Admitiram reintegrar-se no Brasil mediante a garantia de um status virtualmente federativo. Tornaram-se brasileiros por opção.
Em nenhuma outra região brasileira o federalismo assumiu forma mais efetiva e radical do que no RS. A autonomia federativa serviu de instrumento para uma modernização da região. O reformismo agrário e a imigração se combinaram para criar uma numerosa e próspera classe média rural, a primeira do Brasil. Podia-se naqueles tempos promover uma industrialização autônoma financiada só pela poupança interna, e foi o que o RS fez. Administrações competentes utilizaram copiosos superávits orçamentários em investimentos infra-estruturais.

II

Na altura de 1930, o RS possuía a mais equilibrada estrutura social do Brasil; sua economia podia não ser a mais rica, mas tinha a melhor distribuição de renda. Naturalmente havia pobres, mas não pobreza e muita menos miséria como fenômeno de massa. A politização e o civismo gaúchos não tinham similar.
O orgulho regional não se empobreceu ao bairrismo. Os gaúchos sempre se gloriaram, a justo título, de haver promovido através de Revolução de 30 a primeira modernização do Brasil. Iniciativa que não partiu, para eterna perplexidade de historiadores e economistas, da rica região do Sudeste.
Mas no final dos anos 50 multiplicavam-se sintomas de estagnação e retrocesso no RS. Um escritor nordestino, Franklin de Oliveira, tocou a rebate num livro injustamente esquecido; demonstrou persuasivamente que, a persistirem as tendências constatadas, o RS se converteria num 'novo Nordeste'. Um presidente gaúcho tentou uma nova modernização antes do fatídico golpe de 64, mas foi desastrado, e por 20 anos o centralismo autoritário nos chupou o sangue e os ossos.
Não se pode ainda hoje dizer que o RS se tenha transformado num novo Nordeste, mas é gritante que está se nordestinizando rapidamente. A degradação econômica e social nos converte, a um ritmo alarmante, numa terra de miseráveis. s gaúchos estão assustados e humilhados.
É fútil a tentativa de reanimar o desfalecido orgulho através de um otimismo panglossiano que nos consola pelo fato de ser nossa miséria menor que a de outras regiões...
'Estamos no melhor dos mundos possíveis', insistia o doutor Pangloss, apesar de todos os desastres e de toda a miséria. 'Muito bem, mas é preciso cultivar nosso jardim', retorqui Cândido.
Em outras palavras, é preciso pensar na maneira concreta de tirar a região duma crise nada menos que destrutiva - uma crise diante da qual o velho e legítimo orgulho gaúcho se reduz a um pitoresco folclore.

III

Filha do federalismo, a passada prosperidade gaúcha só ressurgirá através de um neofederalismo calcado em amplos poderes soberanos.
O federalismo gaúcho se radicou na condição geograficamente periférica da região, mas também se inspirou na mais vigorosa e eficiente federação moderna, a norte-americana, atribuída por Tocqueville a uma 'teoria inteiramente nova que deve ser assinalada como um grande descobrimento da ciência política de nossos dias'. Os federalistas gaúchos pensavam como Tocqueville: 'Nada existe mais contrário ao bem-estar e à liberdade como os grandes estados territoriais'.
O status virtualmente federativo conquistado pelos Farrapos enraizou ainda mais o autonomismo gaúcho. Na constituinte de 91, deputados de outros estados, sobretudo Pernambuco - vítima predileta do centralismo imperial - agregaram-se à ultrafederalista representação gaúcha, liderada por Júlio de Castilhos. Sustentando que a soberania pertencia aos estados e devia ser condicionalmente cedida à União, propunham a supressão, no preâmbulo constitucional, das palavras 'união perpétua e indissolúvel'; reivindicavam ampla liberdade de emissão, pluralidade de direito substantivo, fontes específicas de renda e até o ius belli. Os estados eram a realidade e a União a ficção que devia ser 'reduzida ao estritamente necessário para viver' (Barbalho).
No seu clássico A revolução estatizada, José Octávio mostrou que 'a centralização emergiu como marca registrada da Revolução de 30'. De resto, a Grande Depressão reforçou o centralismo em todo mund: só um poder central forte poderia planejar, promover e bancar o crescimento econômico. O centralismo do Estado Novo sobreviveu nas práticas do regime da Carta de 46, apesar de seu texto federalista. O autoritarismo de 64 recrudesceu e exacerbou o centralismo. A carta de 88 se reclama de federalista, mas o centralismo permanece vivo.
O gigantismo burocrático da União esmaga a sociedade civil. O orçamento incha a um ritmo superior ao do crescimento do PIB. Concentrando o poder tributário, vampiriza os recursos estaduais, redistribuindo-os segundo critérios políticos ou esbanjando-os irresponsavelmente. Regula e planeja tudo; monopoliza a política financeira e monetária; gere os meios de produção, a energia, as matérias-primas, as comunicações, o transporte, a educação e a pesquisa técnico-científica. Os estados são entidades mendicantes.
Dada a inoperância, na nova ordem econômico-mundial, das regulações e planificações dos governos centrais, generaliza-se a desconcentração do Estado em benefício das periferias estatais regionais e locais), cujo reforço institucional, tributário e financeiro permite-lhes identificar as especificidades locais, buscar as soluções que lhes concernem diretamente, substituir o arbítrio de regulamentações uniformes por diversidade mais adequadas às suas necessidades e aspirações. Os governados, em suma, exercem um maior controle sobre seus recursos. Impõe-se restituir aos estados as confiscadas soberanias, maximizando seu poder e minimizando o de uma União espoliadora e incompetente, à qual em rigor devem ser reservadas a política externa e a defesa nacional
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Um neofederalismo não traduzirá apenas um imperativo de modernidade, mas também a lealdade que os cidadãos devem à sua região. A saída para a clamorosa incapacidade da União de resolver globalmente a crise brasileira não está no separatismo, mas num neofederalismo que permita a cada região, sem quebra do sentido nacional, defender-se contra a espoliação e construir autonomamente um futuro."

Um comentário:

  1. Muito bom!! sim ao neofederalismo! gostaria de saber o que foi publicado sobre o tema nesses quase 20 anos desde a publicação do livro. Abraçao Mopi!

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