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quinta-feira, 20 de agosto de 2009

O Gato e o Espelho

O avô já falecido de um amigo meu, conhecido como “seu Neto”, uma vez me convidou para um dos churrascos que fazia aos Domingo em sua casa no bairro Serraria. A habitação era bastante humilde, e conservava um clima rústico e neutro, quase aconchegante, com a maioria dos cômodos sem piso nem reboco. Estando acomodada de encontro a um barranco que punha fim a um terreno em declive, a construção parecia haver suportado qualquer temporal em mais de vinte anos sem nunca haver sido reformada, conservando sua fachada sem pintura, assim, como que enfiada entre o chão e a parede de terra. Não havia corredor, mas apenas uma sala central com portas para a pequena cozinha, o banheiro, e o quarto de casal; e as janelas pequenas e gradeadas conservavam uma certa penumbra que me fazia sentir como se estivesse em algum lugar do passado.
Eu e Lucas, meu amigo e neto de seu Neto, chegamos na noite de sexta-feira para passar o fim-de-semana, e logo me interessei por um gato que ali vivia. Era um desses vira-latas sem cor definida, e não soube se ele tinha nome, pois todos o chamavam de “gato”. Parecia um tanto velho e cansado, repetindo sua rotina de arranhar o antigo sofá da sala pela manhã, dormir em seus locais preferidos à tarde e caminhar pela rua à noite. Olhando-o gordo e resmungão, cruzava por ele com cuidado para não perturbar seu sossego. Seu ar felino de dono soberano da casa era convincente a ponto de eu mesmo não perceber essa cautela a que me submetia em seu favor.
No dia seguinte daquele mesmo fim-de-semana, a esposa de seu Neto chegou da rua com um espelho. Ela se chamava Cassandra e era daquelas senhoras que as crianças evitam cumprimentar para não se espetarem em seus bigodes. Dizia ter encontrado o utensílio a ótimo preço no camelô de um tal de “Cigano” que montara barraca ali perto. Seu Neto certamente não vira nenhuma utilidade naquilo, e, antes de achar justo a esposa reivindicar o direito de embelezar-se para ir às missas de domingo, preferia não se incomodar expressando alguma opinião. Era um espelho de pequeno porte e um pouco gasto nas beiradas, mas por ser redondo refletia uma área muito maior do que a princípio poderia aparecer. Dona Cassandra deixou-o provisoriamente escorado ao pé da parede da porta da rua, e gostou de ver que podia refletir-se desde qualquer cômodo do casebre. Nem mesmo era necessário suspender-lhe, pois, ao apóia-lo de forma levemente inclinada para cima, qualquer pessoa que estivesse na sala podia enxergar –se por completo sem precisar abaixar.
Lucas pedia que eu não me aborrecesse com as possíveis brigas e neuroses do casal. E de fato seu Neto atribuía más intenções às mínimas palavras de Cassandra, que não economizava nas reclamações referentes à irresponsabilidade do marido para com os problemas práticos da casa, mas considerei isso tudo natural. Eu imaginava mesmo que uma vida a sós entre dois senhores daquela idade deveria ser algo aborrecido, mas, à parte disso, as reclamações dos velhos sobre os vizinhos pareciam ter fundamento. As ruas eram estreitas e os casebres próximos o suficiente para que, logo que chegara, eu pudesse sentir os olhares de algumas pessoas do bairro. Sentia-me inoportuno e constantemente observado.
Na noite do dia seguinte, eu e meu amigo já nos havíamos acomodado em pequenos colchonetes, para esperar o sono vir, quando o gato chegou. Havia entrado por uma portinhola na porta da rua, que certamente alguém providenciara para dar-lhe mais liberdade em suas andanças, e logo cruzou a sala passando por meus pés até chegar ao banheiro. O que faria um gato em “sua” casa à noite? Pensei. Achara engraçado, nas primeiras vezes que o avistei, a forma como ele às vezes se indispunha contra a própria cauda. Fiquei imaginando o quão limitadora era sua condição, pois um bichinho irracional daqueles talvez nem soubesse da existência de seu rabo. É provável que todas suas noites fossem como aquela, voltando para casa depois de passar o dia na rua entretendo-se com suas insignificantes aventuras diárias, mantendo-se naquela calma mais desconsolada do que tranqüila e caminhando com passos tão vagarosos que chegavam a incomodar a quem olhava.
Porém fui tomado de interesse ao vê-lo retornar de sua caixinha-de-areia no banheiro. Ainda na porta ele paralisou de repente e trincou todos seus músculos emitindo aquele ruído característico dos pequenos felinos, uma espécie de sopro áspero, e ficou por um tempo naquela posição com as patas esticadas e retesas e com os pelos arrepiados, descrevendo um arco impressionante com as costas. Depois de muito se concentrar, avançou vagarosamente em direção ao que parecia ser um inimigo, investindo três passos em cerca de uns dois minutos. Sua atenção e cautela me faziam imaginar a triste sorte do pobre rato ou lagartixa que seria atacado, mas eu mesmo não via nada além de sombras na direção em que o gato investia. Divertia-me com seus passos lentos e precisos de leão absolutamente decidido a acabar com a vida de sua presa, quando percebi que na verdade seu focinho apontava para o espelho novo de Dona Cassandra. Lógico, pensei eu, só poderia ser isso, um gato não saberia reconhecer o próprio reflexo e certamente isso o deixara abalado. Quando lhe faltavam uns três palmos para chegar até a superfície de vidro polido, o bichano fez saltarem suas unhas desferindo uma agilíssima patada no intruso, que de fato foi a nocaute, porém não sem encher o bichano de espanto ao revelar-se, com um inesperado e estrondoso ruído, apenas um objeto inanimado. Quis morrer de rir com seu salto acrobático seguido de um miado desesperado, e contive-me o máximo que pude para não molestar os donos da casa. Porém a luz do quarto já havia se acendido, e ouvi a voz de Cassandra:
- O que houve, meu filho?
- Nada vó, disse Lucas acordando de um sono despreocupado, foi o gato que deve ter esbarrado no espelho. Amanhã eu arrumo pra senhora. Boa noite.
- Ele quebrou?
- Não, não, está tudo em ordem, durma bem.
- Ai meu Jesus, esse gato velho ainda tem dessas... Boa noite meu filho.
- Noite...
Na manhã seguinte, todos acharam muita graça na minha descrição sobre o ocorrido, com exceção da senhora Cassandra que havia reparado duas pequenas ranhuras em seu espelho novo. “A culpa é desse gato velho”, disse seu Neto, “parece filhote, precisa é de uma lição pra deixar de ser curioso”.
Fixaram o espelho com parafusos, e combinaram de castigar o animal na próxima vez que fizesse algo parecido. Mas não foi preciso, pois o gato passou a vagar sempre nos cantos mais escuros da casa, mantendo-se distante do vidro refletor. Eram poucos os lugares onde ele não pudesse se ver, e então já não se atrevia mais a arranhar o encosto do antigo sofá da sala nem tomar sol na janelinha ao lado da porta. Seus miados tornaram-se ainda mais resmungões, caminhando com medo de ser notado e saindo de casa somente quando alguém encobria a superfície do espelho ao abrir a porta da rua, e ainda assim saía em disparada. Depois voltava por alguma janela como uma flecha e acomodava-se no primeiro canto escuro que encontrasse.
Eu ficava impressionado e ao mesmo tempo comovido com a estupidez do bichinho. Se antes era engraçado ver-lhe sem conseguir desenredar-se de um novelo de lã onde ele mesmo havia se emaranhado, ou tentando atacar a própria cauda, agora já havia algo de trágico em seu temor ante os próprios movimentos bruscos refletidos, vociferando em ameaças contra aquele pelo qual se sentia ameaçado.
A situação pareceu tornar-se preocupante quando as fezes do gato passaram a ser encontradas no chão. Os dois senhores diziam espantados que aquela era a primeira vez em que o bicho fizera algo do tipo. Em seus quinze anos de vida naquela casa ele jamais havia negligenciado sua caixa-de-areia, e, se algum dia aquele bichinho demonstrara alguma qualidade, certamente fora através de seus antigos hábitos de higiene que agora haviam sido esquecidos. Mas ainda que, além disso, o bicho já quase não se alimentasse, a sua tragédia ainda nos rendia gargalhadas volumosas o suficiente para interromper qualquer pensamento de preocupação, e era esse o clima da casa quando a deixei no Domingo à noite para voltar ao apartamento de minha mãe no centro da cidade. O fim-de-semana acabava e eu precisava voltar a estudar.
Eu e Lucas fazíamos um cursinho pré-vestibular, e alternávamos o dia indo às aulas à noite e estudando em casa pela tarde. Era uma época vazia, e o programa mais variado que fazíamos era matar aula para ir jogar sinuca no bar do prédio ao lado. Nos primeiros dias da semana a história do gato nos serviu para amenizar o marasmo daquela rotina, mas logo Lucas recebera a notícia por telefone de que o gato havia piorado e o espelho acabara sendo colocado em um lugar mais reservado. De certa forma fiquei decepcionado por o caso haver sido solucionado. “Pobre gato...” Dizíamos repetidamente entre risos e cochichos.
Outro fim-de-semana sem nada além de livros para ler, e então resolvemos ir ao Serraria apenas para comer churrasco, pois a essa altura o gato já deveria ter se recomposto e merecia um sossego. Fazia calor naquela época, e certamente passaríamos a tarde em frente ao ventilador sem nada o que fazer além de beber cerveja e escutar os comentários mais ignorantes do mundo pronunciados pelos apresentadores dos programas de Sábado na televisão.
Porém a confusão do fim-de-semana passado não havia acabado. Aliás, achei que não haveria solução para aquele caso enquanto o espelho e o gato estivessem na casa. Um haveria de sair, pois após trocarem cinco vezes o espelho de lugar, seu Neto e Cassandra constataram que o próprio bichinho procurava o espelho até reencontra-lo e recomeçar suas ameaças, saltos, disparadas repentinas e miados queixosos em baixo da cama ou do fogão. Defecava apenas nos cantos onde não se sentia observado pelo seu reflexo, e os donos mudavam sua caixa-de-areia de lugar para incentivar-lhe a retornar sua higiene habitual, mas não souberam como faze-lo comer após ele constatar que a intimidade de seu prato havia sido violada pelo “outro” gato, que, assim como o original, estava cada vez mais magro e curvado.
“Um bichinho estúpido assim não sabe evitar problemas”, me dizia Cassandra com pena, “não entendo porque ele procura o espelho para entrar em choque novamente”. Eu concordava, e respondia que lhe havia faltado uma mãe para ensinar que não se metesse em problemas desnecessários. “Olha que a curiosidade matou o gato”, dizíamos em gargalhadas.
Entretanto, ainda que se mantivesse angustiado, o gato aos poucos criava mais coragem, como quem não tivesse outra saída, e começou a encarar-se sem sobressaltos por alguns segundos. No início fugia logo, mas aos poucos foi tomando coragem e ousando demorar-se um pouco mais em frente ao espelho. Por mais ridícula que achássemos a situação daquele gato irracional, Lucas, seus avós e eu ficávamos cada vez mais fascinados com sua trama. O espelho já havia sido posto na rua, e isso apenas fez com que ele passasse a sofrer seus chiliques na grama do pátio e não mais na sala ou na cozinha. O próprio reflexo era a fonte de todos os infortúnios da vidinha daquele animal, que ainda assim perseguia o seu tormento, mesmo que o odiasse, mesmo que não o entendesse.
“Coitado do gato...”, nos dizíamos ao vê-lo amaldiçoar seu inimigo imaginário com todo o número de impropérios possíveis na sua linguagem de ronronares e caretas. À noite miava desconsolado e pedia colo aos da casa como se buscasse o consolo de alguém que o compreendesse, e eu mesmo me comoviam ao ler pedidos de socorro em seus olhinhos assustados. Imaginava-o falando como um ser-humano e pedindo que lhe resgatassem de um mundo cruel e sem escapatória. Aos poucos nomeávamos os sentimentos que achávamos mais adequados à impressão causada pelos seus miados. “Medo”, “desespero” e “desesperança” eram os nomes que me vinham com mais freqüência, e eu quase chorava sentindo aqueles afetos que acreditava serem do gato, adquirindo uma empatia inexplicável por sua expressão cada vez mais humana, enquanto me sentia cada vez mais gato. Quantas vezes eu havia me sentido assim nesse mundo injusto. Quantas vezes eu me sentira perseguido por pessoas que não queria encontrar, ou evitara assuntos doloridos que me encontravam até quando estava só em frente à televisão. A única diferença é que no caso do pobre gatinho ele não alcançava perceber que o que via era seu próprio reflexo, e não outro gato de verdade.
Na madrugada de Domingo, quando os donos da casa já haviam decidido doar o espelho, aconteceu algo diferente. Depois de passar mais tempo do que nunca fitando o próprio reflexo, o gato parecia ter perdido totalmente o medo. Havia passado quase uma hora em que ele permanecera imóvel, com o olhar firme e fixo. Eu já estava mais dormindo do que acordado quando o vi arranhar o espelho com leveza, quase que o acariciando, sem saber se eu é que estava sonhando. Às vezes até retrocedia para trás e avançava sem perder o “outro” gato de vista. Imaginei que ele tivesse passado a noite assim, pois quando o sono me alcançou eu já havia o observado sem grandes sobressaltos por mais de duas horas. Dormi pensando sobre o que mudaria nas suas trapalhadas, talvez agora encararia seu reflexo como um amigo e não mais um inimigo.
Acordei quase ao meio-dia com uma interjeição de espanto de dona Cassandra. Parecia assustada com alguma novidade em relação ao gato, mas levantei e o vi ainda parado na frente do espelho. Bocejei e disse:
- Pois é, ele passou a noite assim, olhando pro espelho. Acho que perdeu o medo, e talvez tenha inventado um amigo para si. Melhor que a confusão de antes, né?
- Pode ser, mas... tu acha que é só isso? Olha só!
- Acho que sim, ele está atacando o rabo como antes, e parece não estar preocupado com seu reflexo...
- Mas olha bem guri!
Reparei melhor, e a princípio eu havia pensado que sua relativa sanidade, de gato, havia se restabelecido, mas, mais do que isso, ele agora tocava o rabo acompanhando-se no espelho. Erguia-se, tornava a sentar e girava sempre sem deixar de fitar seu reflexo. De alguma forma, obrigado a tentar vencer todo o sofrimento pelo qual passara, o gato parecia ter percebido quem era o “outro”. Estudava-se vagarosamente, ao passo que seu apetite e bons hábitos higiênicos iam voltando. “Menos mal que esse gato já não é tão burro”, pensei eu, e tive a ilusão de que ele já alcançava a própria cauda com mais facilidade, como se houvesse aprimorado sua percepção.
Porém o resto da casa também seguia observando o bichano, e alguém disse tê-lo visto se emaranhando em seu novelo de lã para logo após desfazer-se do problema com uma habilidade que só poderia ser proposital.
- Ele fez de propósito, dizia dona Cassandra, ele está ficando mais inteligente.
Apesar de seu Neto e Lucas não terem duvidado dessa hipótese, eu, logicamente, não acreditei. Tentei explicar aos dois senhores que aquela história toda já havia nos impressionado demais, e estávamos “vendo coisas”, inventando. Mas mesmo que Lucas e seu avô compartilhassem a crença naquele fenômeno como algo fantástico, para dona Cassandra aquilo não era outra coisa senão um caso assombroso, horripilante. Logo os vizinhos se inteiraram do boato, e este correu pelo bairro com a mesma dimensão pavorosa do que seria a descoberta de um alienígena.
De verdade que o gato havia serenado, mas de normal ele já não conservava muita coisa. Todos havíamos bebido muita cerveja, e eu, ciente disso, me divertia com essas impressões que tínhamos. Certamente o álcool nos pregava uma peça enorme que nós mesmos não gostaríamos de interromper, esforçando-nos em manter interessante aquele caso absurdo. O bichano parecia não gostar do movimento indiscreto e descuidado daquelas senhoras vizinhas gordas tentando observa-lo sem serem notadas, e deveria ser fácil perceber seus passos bruscos e odor característico de suor e detergente, mas juro tê-lo visto fitando-as nos olhos e acompanhando seus movimentos com uma expressão de interesse extremamente clara e perceptível. Eu mesmo passei a temer o bicho, que parava seus afazeres toda vez que eu começava a falar, e me escutava até que eu me calasse, respondendo esporadicamente com miados distintos. Sem dúvida nenhuma o bichano parecia ter aumentado vertiginosamente sua compreensão do mundo.
Enquanto eu seguia bebendo já despreocupado em saber o que era ilusão e o que era realidade, um par de vizinhas que já haviam adentrado a casa dizia que a culpa era do espelho, e dona Cassandra acabou concordando em dar sumiço àquela “obra do Demônio”, como passaram a dizer. Para elas, o demônio teria se personificado no cigano camelô que nunca mais havia aparecido na região. A essa altura ninguém mais duvidava de que houvesse algo de para-normal naquele gato, e foi chamada uma mãe-de-santo local que, benzendo a cabecinha do gato com sangue de pombo, assegurara a expulsão do que segundo ela seria um “encosto”. Porém o gato foi até o banheiro, abriu a torneira da pia, lavou-se e escapuliu pela janela.
Grande parte da rua então via o gato como responsável por vários de seus problemas pessoais, financeiros, e até fenômenos naturais como tempestades, mas ele mesmo nunca mais defecara em local inapropriado nem destruíra qualquer tipo de móvel para o próprio entretenimento como antigamente. Não deixava rastros e, ao meu ver, parecia faze-lo conscientemente. O bicho agora interagia com seu mundo e afazeres como se os dominasse completamente. Voltara a ser sadio, e fazia com mais habilidade tudo o que se propunha a fazer.
Quanto ao espelho, eu mesmo ajudara a pendura-lo na parede e não vi nada de especial além de um pouco de ferrugem, mas todos na casa agora acreditavam que ele fosse mágico, e morriam de medo de fitar-se por muito tempo. Seu Neto e dona Cassandra decidiram deixar o utensílio em uma avenida afastada para nunca mais terem de avista-lo, pois ninguém queria se arriscar a passar o mesmo desespero pelo qual o gato havia passado, sendo esse temor infundado ou não.
Depois disso eu passei algumas semanas seguidas sem voltar ao casebre. Lucas dizia que o gato se havia ido não se sabe pra onde, e tanto a casa quanto a vizinhança haviam voltado à normalidade. É bem certo que o gato, que não era humano, mas que já não era mais gato, não seria esquecido com facilidade, e sua ausência fora sentida principalmente por alguns moradores mais exaltados que o haviam tomado como santo, pois durante alguns meses ainda foram vistas algumas oferendas para o “gato santo” na esquina mais próxima à casa de seu Neto; mas o tempo se encarregou de amenizar os ânimos e reconstituir o antigo ritmo lento predominante na casa: dona Cassandra arrastava suas pantufas e volta e meia reclamava de seu Neto, que vivia esquivando-se de seus comentários inconvenientes.
Cada vez que eu repito essa história fico sem saber se a vivenciei completamente, pois a sinto como se tivesse vida própria e se autoconstruísse na medida em que a vou contando. Nunca mais fui visitar seu Neto, e até prefiro que seja assim, pois não gostei de ver como um punhado de pessoas ignorantes ávidas por novidades pode inventar uma realidade fantasiosa e fomentar tanta fofoca em torno de um simples gato e um espelho sem utilidade. Bebíamos cerveja quase que o fim-de-semana inteiro e certamente isso contribuíra para aquela confusão toda. Aos poucos fui esquecendo do gato e mergulhei em minha rotina de estudos para posteriormente ingressar à faculdade. Mas numa coisa eu concordo com o bichano: o mundo na maioria das vezes é cruel e não nos deixa saída, mas é por isso que eu prefiro não procurar problemas gratuitos. Já bastam as pessoas e tormentas diárias que tornam nossas vidas sempre mais difíceis de serem vividas.

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